Regalos

A Substituição do Olhar Parental pelo Olhar Terceirizado

26/07/2022

Esse é um tema que me acompanha a alguns anos, a todo momento sendo ressignificado. Hoje resolvi retomá-lo para reflexões.

O trabalho, “A falta do olhar suficientemente afetivo: substituição do olhar parental pelo olhar terceirizado”, por mim apresentado no X Congresso Internacional sobre Observações de Bebês, segundo o Método Esther Bick / Turin, me levou, posteriormente, a conexões com alguns episódios da série Black Mirrorque, nesse momento, farei breves reflexões.

Em Arkangel me deparo com a questão foco atual de minha atenção: a primeira infância e a tecnologia substituindo mais do que a função, o estado de ser pais, no caso do episódio de Black Mirror, ser mãe.

Arkangel pode ser interpretado por diferentes ângulos. Antes porém uma breve digressão: arkangel, para os cristão significa os sete anjos destinados a, com suas visões, serem os sete olhos de Javé, portanto de Cristo. Os sete anjos são simbolizados com lâmpadas diante do trono de Deus, a penetrante visão do Criador. Para Feud, em Totem e Tabu (1913 ), Deus na evolução do sujeito é a representação do pai que, na infância, proíbe e pune, mas também protege.

Vou me permitir abordar, nesse momento, apenas o que me vem à mente quanto a esse episódio da série. Não há dúvida de que Marie, como tantas outras mães é preocupada e atenta a sua filha, e como a mais comum das mães gostaria de ter sob seus olhos, passo a passo, deste desenvolvimento.

Qual mãe não pensou, em algum momento, ter um olhar virtual? Resquício da onipotência e amor materno: sob seu olhar nada de ruim acontecerá a seu bem mais precioso. Com certeza, inúmeras mães já se imaginaram, mas quantas, além de dar um celular ao filho e tentar monitorar seus passos, instalou um chip em sua mente?

Marie diante da total insegurança frente a seus sentidos (em especial tato, visão, audição), tem a necessidade de um outro olhar, cabe destacar ela é uma mãe solo. Na ansiedade desmensurada de perder a filha, optou por, aos 3 anos de Sara, controlar seus passos. Importante lembrar que está é uma fase de desenvolvimento que, em geral, a criança tanto já tem em seu pensamento a mãe representada quanto usufrui de maior autonomia.

Quando Marie imaginaria que ao proteger a filha de forma tão confortável para si, poderia leva-la a danos psíquicos? Poupá-la, tanto assim, a fragilizou quanto as agressões humanas e a própria agressão, impediu a menina de criar defesas necessárias e suficientes para autorregular seus sentimentos e emoções. Ao delegar à tecnologia seu novo par de olhos, um controle black mirror, esqueceu que filhos necessitam de olhos e contato humano para se sentirem vivos e com sentido sua própria existência.

Para o filho desenvolver suas competências psíquicas, necessita de pais que se curvem a própria impotência, abram mão de zonas de conforto, vivam, em parte, na insegurança diante do mundo e apostem no apego seguro já estabelecido ou, que virá a se desenvolver junto a eles.

Paradoxalmente, portanto, ao viver suas inseguranças frente a autonomia dos filhos, fortalecem o estado de ser pais, criando um espaço e tempo para que esses desenvolvam sua própria base segura.

A contemporaneidade, com seu tempo fast-food vem na contramão do afeto que prepara e nutre psiquismos em estágio inicial de desenvolvimento. Algo a refletir sobre a época atual: até que ponto seus olhos já não são black mirror? Na medida em que o adulto está a cada dia mais dessensibilizado (anestesiado em seus sentidos) e adicto a uma tela para se ver e ver o mundo, como poderá ver seu filho sem ser através de olhos black mirror?

Pais, pensem: seus olhos são black mirror!? Sempre é tempo de olhar seus filhos com os olhos (todos os sentidos) que Deus lhe brindou!

Psicanalista Lúcia Grigoletti